Em 2023, é inegável que o acesso à Internet é condição necessária para a consolidação de direitos. No entanto, muitas vezes, ignoram-se os elementos estruturais fundamentais para a concretização da ideia abstrata – quase um desejo – de que o acesso à Internet deve ser um direito de todos.
O presente artigo pretende explorar a relação entre (in)justiça socioambiental e conectividade, bem como a necessidade de uma infraestrutura adequada voltada ao interesse público, que contribua com o desenvolvimento socioeconômico, a justiça socioambiental e a segurança dos povos originários, em especial na região amazônica.
No Brasil, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) definiu o acesso à Internet como essencial ao exercício da cidadania. O MCI foi sancionado no Netmundial, evento multissetorial de governança da Internet realizado em 2014 na cidade de São Paulo, que também reconheceu a Internet como um recurso global que deve ser gerido segundo o interesse público.
De acordo com o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (Nic.br), 152 milhões de habitantes acessaram a Internet em 2020 no Brasil. Atribuem esse número à expansão das redes de fibra óptica em todo o território nacional na última década; Enquanto 49% dos provedores ofereciam esse tipo e serviço em 2014, 91% podiam fornecê-lo em 2020.
Embora os índices de conectividade tenham aumentado no Brasil na última década, muitas áreas e populações ainda são significativamente afetadas por uma política desigual de implantação de infraestrutura de Internet e consequente disparidade de preços. A pesquisa Fronteiras da inclusão digital: dinâmicas sociais e políticas públicas de acesso à Internet em pequenos municípios brasileiros, publicada pelo Cetic.br em 2022, mostra que a oferta de conexão não é homogênea no País. A investigação, que contou com a parceria da Embaixada do Reino Unido e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), buscou entender as barreiras de conectividade em municípios com menos de 20 mil habitantes. Nela, os pesquisadores identificaram que os pequenos provedores de Internet são quem mais levam a Internet até a última milha (a Abrint estima que haja mais de 20 mil provedores desse porte no Brasil); mas que, mesmo assim, enfrentam barreiras para expandir a infraestrutura a áreas rurais e remotas, além da baixa qualidade da Internet nesses lugares. Como elementos importantes para superar esse desafio, apontam a expansão da participação em Pontos de Troca de Tráfego (PTT) e a adoção do IPv6 (poucos provedores detêm ou usam endereços IP desse tipo).
Publicada em 2022, uma pesquisa do Instituto de Defesa do Consumidor sobre conectividade na região Norte do País, em parceria com a organização chilena Derechos Digitales, também mostrou a disparidade de acesso, qualidade e preço em diversos municípios e entre diferentes planos. O preço por Mbit/s variava até quase 200 vezes na própria região Norte (sendo o mais baixo, R$ 0,28 por Mbit/s e o mais caro, R$ 50,00 por Mbit/s). Grande parte da população sem acesso à Internet possuía uma renda familiar inferior a um salário mínimo e atribuía a falta de acesso à inexistência de oferta ou ao preço.
Assim, populações de baixa renda vivendo em territórios indígenas e rurais, combatentes defensoras ambientais que preservam nossas florestas há séculos, são as mais prejudicadas por uma infraestrutura desigualmente implantada.
As relações entre conectividade e proteção ambiental são muitas e notáveis. Por exemplo, sem acesso à Internet, lideranças ficam sem contato imediato com órgãos de denúncias para alertar sobre ameaças nos territórios, e, quando precisam se refugiar para se proteger, ficam sem contato com suas famílias e comunidades. Além disso, ficam cada vez mais excluídos de acesso a serviços públicos e governamentais, alijados do acesso à informação, e necessitam de longos deslocamentos para articularem-se.
Nos últimos 30 anos, a luta pela preservação ambiental impulsionou o desenvolvimento da Internet no Brasil. Em diversos momentos, a história das conferências ambientais cruzou com a do desenvolvimento da Internet no Brasil. Tratamos disso em artigo recente publicado na ComCiência.
O Instituto Nupef vem trabalhando com indígenas, quilombolas e quebradeiras de coco babaçu, identificando as necessidades dessas populações em relação à conectividade e ao uso seguro de ferramentas online, para proteção de suas comunidades e dos recursos naturais. Esse trabalho nos permitiu vivenciar concretamente a dificuldade de encontrar infraestrutura adequada para contribuir na promoção do acesso à Internet. Os desafios para a criação de infraestrutura na região norte são imensos e numerosos: as condições geográficas – muitos rios, chuva, florestas densas e uma extensão que representa 45% do território brasileiro. Apesar da expansão da fibra ótica na Amazônia, e dos programas de metas de universalização do acesso à Internet, ela ainda é bastante limitada e muitos territórios só conseguem conectar-se por meio de alguns poucos provedores de Internet por satélite. As disparidades de qualidade e preço, no entanto, são ainda maiores.
A título de comparação, enquanto os grandes centros urbanos no Brasil contam com Internet residencial sem limite de franquia a valores de aproximadamente R$ 120 mensais (ou cerca de U$S 25), para uma conexão com velocidade acima de 100 MB, uma comunidade quilombola no interior do Maranhão precisa desembolsar R$ 600 mensais (ou cerca de US$ 125) para uma Internet satelital com velocidade de no máximo 20 MB e uma franquia limitada a 80 GB por mês, o que frequentemente resulta em mais de 10 dias sem Internet.
Entre os poucos provedores que alcançam áreas desprovidas de qualquer sinal estão a HughesNet, a ViaSat e a RuralWeb. A ViaSat, empresa de origem norte-americana que se estabeleceu em vários lugares do mundo, conta com satélites pertencentes à Telebras, empresa brasileira, hoje de capital aberto e economia mista, vinculada ao Ministério das Comunicações. Mas a oferta de serviço, no geral, segue as diretrizes do mercado. Embora o site do programa Wi-fi Brasil informe ser possível a parceria com comunidades tradicionais e organizações da sociedade civil para ampliar a inclusão digital, quando, no contexto do nosso projeto de redes comunitárias em territórios indígenas e de populações tradicionais, procuramos a operadora para saber se os beneficiários poderiam contar com seu apoio por meio da oferta de Wi-fi, não havia nenhuma modalidade não onerosa aos beneficiários do programa.
Esse cenário vem mudando de forma bastante vagarosa. Contribuem para essa transformação: a expansão da rede de fibra ótica por pequenos provedores; grandes projetos como o Programa Amazônia Conectada, implementado pela Rede Nacional de Pesquisa, que expande a rede de fibra ótica por redes pluviais e sub-aquáticas; e o avanço de tecnologias relativamente novas como os satélites de baixa órbita.
A cobertura no Brasil dos satélites de baixa órbita tem suscitado reações diversas: desde esperança de uma conectividade de melhor qualidade em áreas sem acesso ou com Internet muito lenta e limitada, até grande preocupação com os efeitos de sua popularização para a segurança das comunidades, para a preservação ambiental e para a astronomia (cientistas já apontaram que essa tecnologia interfere e pode impactar negativamente na observação do céu).
No Brasil, em particular, a autorização para operação da Starlink, empresa do bilionário Elon Musk, também dono do Twitter e da Spacex, causou muito alvoroço midiático. De um lado, houve grande cobertura sobre supostos acordos entre a empresa e o governo brasileiro, comandado à época pelo presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, para conectar todas as escolas na região norte do país – a oportunidade mobilizou também organizações ambientais, que vislumbraram a possibilidade de levar Internet a 5 mil comunidades quilombolas, indígenas e extrativistas; de outro, denúncias de interferência exercida pelo Ministério das Comunicações sobre a Agência Nacional de Telecomunicações para autorizar, em curto espaço de tempo e sem estudos, a oferta do serviço no Brasil. Mais graves foram as denúncias de uso da tecnologia da Starlink por garimpeiros atuando ilegalmente em territórios indígenas.
Na prática, não só se apurou que não houve acordo formal entre Starlink e o governo brasileiro para conectar as escolas, como também apenas três escolas foram conectadas até hoje (três das 19 mil), mais de um ano depois. Em contrapartida, algumas aldeias já foram conectadas com os satélites de baixa órbita por meio de projetos da sociedade civil.
Além de preços mensais inferiores, os usuários dessa tecnologia observam qualidade de sinal significativamente maior do que aquela oferecida pelos satélites tradicionais. O valor de entrada, no entanto, é maior, já que comprar o kit requer um investimento inicial que já variou de R$ 5.000,00, no início da operação, para os R$ 1.400,00 atuais.
Com potencial de atingir um grande número de usuários, outras perguntas sobre a nova tecnologia que está gerando esperança de conectar a Amazônia emergem: quão sustentável será termos milhares de satélites de baixa órbita no espaço? Existe o risco de impactarem a observação do céu? O que acontecerá se e quando esses satélites caírem ou virarem lixo espacial? O que é preciso fazer para que o garimpo ilegal não se beneficie dessa tecnologia portátil? Existe alternativa tecnicamente compatível ou superior para conectar os povos que vivem na floresta e garantir-lhes o direito de acesso à Internet?
Não temos respostas a essas perguntas ainda, mas o que vemos é que as soluções que o mercado têm dado não são suficientes para garantir equidade de direitos e justiça socioambiental. O problema da conectividade para promover justiça socioambiental requer respostas multissetoriais, com participação do Estado e da sociedade, buscando igualdade nas condições de acesso. Não é razoável que um serviço tão essencial quanto a Internet fique exclusivamente refém de interesses comerciais e que a infraestrutura necessária a seu funcionamento siga os preceitos de retorno sobre investimento localmente. Se queremos proteger a Amazônia e os povos originários, precisamos pensar em uma “conta Brasil”. É papel do Estado brasileiro, do mercado e da sociedade contribuir para o investimento em fibra óptica e Internet de alta velocidade em todo o território nacional, reduzindo a dependência de ofertas exclusivamente comerciais. Precisamos vislumbrar um sistema público de infraestrutura, que nos permita explorar e testar alternativas de expansão da infraestrutura existente com baixo risco de impacto ambiental e na segurança de todos. E garantir às comunidades e aos pequenos provedores acesso a essa infraestrutura pública.
Referências
https://www.derechosdigitales.org/wp-content/uploads/DD_Amazonia_2_Brasil.pdf
Oona Castro é diretora de desenvolvimento institucional do Instituto Nupef. É jornalista e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela estuda e trabalha com Internet, comunicação, cultura e direitos humanos há mais de 20 anos.